Não bastasse a morosidade irritante no julgamento dos processos submetidos a exame do Poder Judiciário brasileiro, o Congresso Nacional tinha mesmo de dar sua contribuição, nefasta, para mais retardar e mais entulhar o cipoal de imbecilidades de que vão recheados os códigos vigentes no Brasil.

A Lei Federal 13.964/2019 é um eloquente sinônimo de sandice, mormente se cotejada com o comportamento de alguns membros do Supremo Tribunal Federal. A lei criou a figura do “juiz das garantias”, cujo ofício há de ser o controle da legalidade da prisão em flagrante e da investigação criminal, sendo do seu ofício, também, autorizar medidas restritivas de direitos, como buscas e apreensões, prisões e interceptações telefônicas etc., atuando até o recebimento da denúncia. Recebida esta, a responsabilidade passa para o Juiz Natural, é dizer, para outro juiz de 1ª instância.
A lei foi publicada há seis anos, mas curiosamente o STF continua a ignorá-la completamente. Há Ministro que se diz vítima de crime e, estranhamente, avoca para si a presidência da apuração dos fatos em que hipoteticamente esteve envolvido, sendo seu intento também, ao que tudo indica, proferir o julgamento. Para quem ainda não observou, há uma verdade incontestável no meio jurídico, aquela segundo a qual não há processo sem alguém que acuse, outro que defenda e um juiz que julgue. A Corte Maior finge ignorar esse axioma multissecular. Olvida também a garantia do cidadão de ter seu julgamento presidido, em primeiro lugar, pelo Juiz Natural.
Quer o leitor um exemplo? Há um, muito eloquente. O atual Presidente da República, o Sr. Luiz Inácio Lula da Silva, foi processado, condenado e preso pelo juiz de primeiro grau (juiz natural). Teve ele direito a recurso? Sim, recorreu, e depois de passado o processo por três tribunais (que terminaram aumentando a pena de reclusão), o feito foi anulado por um Ministro do STF que, “coincidentemente”, fora indicado (ou teve a indicação apoiada), por aquele que fora sentenciado. Esse mesmo tratamento, o da garantia do exercício do direito da mais ampla defesa (assegurada pela Constituição Federal), foi negado a outro ex-presidente, Jair Messias Bolsonaro, de quem se subtraiu o postulado constitucional do Juiz Natural, visto que será julgado diretamente na instância máxima, sem direito a recurso, porque recorrer para o mesmo tribunal, para os mesmos juízes, é o mesmo que asfixiar e amesquinhar o direito fundamental da defesa absoluta.
Confrontados esses fatos com a lei que criou a figura do “juiz das garantias”, a ilação obrigatória vai no sentido de que, ou o texto legal vale para todos os juízes, ou a nenhum deles cabe cumpri-lo. Se o juiz de direito que se manifestar no inquérito não pode sentenciar o cidadão que se transformar em réu, por qual motivo essa proibição não vale para o STF? Sob qual fundamento esse mesmo tribunal concede o direito ao Juiz Natural a um réu, e denega a outro? O Ministro, conhecendo do inquérito, fica refratário ao que nele se contém, daí seu direito de julgar, mesmo se manifestando na apuração primária do crime? Essa natureza, a de se tornar insensível ao que se apurou no inquérito, não coube, sempre, a todos os juízes criminais? Essa intangibilidade, agora, só calha aos Ministros da Corte Maior? Se é assim, todos os juízes de 1º grau estão sob velada suspeição.
Diz-se, portanto, que a lei que criou o juiz das garantias é um dos institutos mais hipócritas já produzidos pelo Congresso Nacional, e dele deveriam se envergonhar todos os que votaram a favor, seja porque agride a honorabilidade e a seriedade dos juízes de primeiro grau, seja porque constitui grave empeço para a máquina judiciária, aumentando sobremaneira o trabalho de todos os juízes de direito que, de repente, passaram a cumular, além do ofício esmagador de suas respectivas varas judiciais, a função (obrigatória) da manifestação em inquéritos policiais.
O Judiciário anda mal? Não se assuste, vai piorar.
A lei do achincalhe
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